terça-feira, 11 de julho de 2023

Dona Vera e o quintal da Flora | Jardins Comestíveis

eu conheço uma pessoa com muita dificuldade de socializar. extrema dificuldade em travar vínculos duráveis. um tanto intolerante, crítica e impositiva nas relações. com dificuldade de assumir seus erros. embora muito profundamente reflexiva sobre tudo que consegue alcançar, sobre si, e sobre os outros.

uma pessoa que leu muito sobre temas variados entre educação, filosofia, espiritualidade num sentido amplo. mas que minimamente tentou, sem sucesso, se vincular a algumas correntes, sempre se desencantando com o elemento humano das empreitadas.

essa pessoa é Vera Lúcia, excelentíssima figura, minha mami. aquela que sempre sonhou com a maternidade. colecionava recortes de bebês quando criança. que teve três. e a partir daqui se seguir nessa seara posso ficar triste. por ela, enfim.

ela segue com uma postura de desencanto com o ser humano. sofreu com o meu pai porque ele era muito caseiro, semana toda fora de casa. e ela querendo espairecer, justamente o contrário. nada de social sabe, sua vontade era mais de natureza. ele não queria ir. não a impedia de ir, mas não gostava nada nada. e ela sempre não gostava aquilo tudo também, porque era muito carente de sua compania. ainda diria minha mami,.. escorpionino possessivo.

ocorre que ela ainda quer sair, mas isso mudou muito. ela tinha vontade de terminar sua faculdade de pedagogia, fazer alguns cursos, interagir mais com o mundo de fora. mas, uns anos agregados, conflitos com vizinhos, doença, morte do papi. entre outras cositas, fizeram uma Verinha bemm reclusa.

e aí, se afundou no quintal. às vezes a gente convida pra uma coisa ou outra, ela diz ahh tô muito velha, não tenho mais idade pra isso, ando muito cansada, .. tal, aí ce vai, tá a velhinha se equilibrando naquele barranco que ela vive esculpindo. 

mami curte verde, ela curte plantar. e vivia brigando com o matagal que crescia muito rápido, e selvagem por todo espaço. até que um dia ela resolveu usar aquele veneno típico lá, que eu esqueci o nome. fiquei horrorizada, falei um monte, pedi pra ela pesquisar outras possibilidades. mas também não tava na pele dela, não tinha sua vivência, mas queria fazer algo. 

foi aí que lembrei, poderia sim fazer algo por ela. e que iria de encontro a duas necessidades dela, uma direta, quintal, outra meio escondida, socialização.

no carnaval de 2015, eu e Danilo participamos de uma vivência permacultural na escola da Mildred, Nova Oikos, em Camburiú.

foi uma aproximação. na época nós flertavaos com a possibilidade de fazer um PDC, e estávamos ampliando o entendimento.

foi interessante. Mildred é uma pessoa admirável, adorei conhecer sua pesquisa, vivência em outros espaços referência pelo mundo, sua fala lúcida, bem conceituada, acessível e comprometida com o que acredita.

então lá conheci a  Dalva Sofia, outra mulher de pesquisa e atuação muito lindas.

engenheira agrônoma e paisagista, professora na Universidade  do Vale do Itajaí. que realizava trabalhos com produtores orgânicos e cooperativas populares com consultoria, e que ali estava oferecendo uma oficina. sob sua supervisão criamos alguns canteiros elevados, aquela técnica alemã de nome complicado. 

depois dessa vivência, nasceu projeto itinerante chamado Jardins Comestíveis, dela e mais duas permacultoras a Leilen e a Juliana. e a primeira edição foi em uma residência na praia da Guarda.

nós participamos da primeira, conhecemos melhor as práticas, e na segunda, eis a ideia lá do início. convenci minha mãe a participar. tinha tudo para agregar nas suas investidas. de maneira mais natural e usando muito do material que ela já tinha ali na sua casa.

ela amou, e quis muito realizar uma das edições na sua Flora. ficou super animada, recebeu as meninas na sua casa, comentou das coisinhas que ela queria fazer, do que não ia pra frente, e montaram então o que seria oferecido como oficina no quintal dela, eu estava ao seu lado, fiquei contente da animação dela, e de ter feito essa aproximação.

elas fecharam o bokashi, silo de microorganismos do bosque nativo, e aquele negócio bemmm fedido, o bio-fertilizante de abóbora. além de algumas questões específicas do espaço dela com relação a canteiros a construir, podas e outras atuações típicas da vivência. ahh tinha um olhar também pra contenção do barranco, lembro que ganhamos muitas mudas de vetiver, e fizeram também uma história com pneus. era fácil porque do lado da casa da mãe na parte de cima tem uma borracharia.

quando voltar a ter computador quero recuperar um pouco disso, alguns registros. foi uma experiência e tanto pra ela. bem única na verdade, de receber pessoas interessadas em olhar com ela aquilo que ela mais ama. fazendo coisas tão tranquilamente, o que ela tinha que ficar correndo atrás de nós, filhos, para resolver, e demorava mil anos. enfim.

eu tinha desde sempre muito incômodo com os ingredientes. amava o silo de paixão, porque era vegano, e super poderoso igual. mas o bokashi,.. aquele de abóbora então, o que ia de excremento animal, soro de leite, coisas assim, me deixava bem incomodada. sobre a receita de abóbora cheguei a perguntar se não existia a possibilidade de fazer sem utilizar esse material agregado e a resposta, além de olhares surpresos, e alguns risinhos foi algo como, porque eu iria deixar toda essa fertilidade que a natureza oferece de lado? bem,  eu não soube argumentar, mas não conseguia me convencer de que não havia opção. não tinha quase nada pela internet afora, .. continuei cultivando dúvidas, até que no futuro respostas mais bonitas foram nascendo, ou chegando até mim. naquele passado.., era eu e o silo ♡, só queria usar ele.

mas isso sou eu né, nada disso era sobre mim. por ela eu ajudei a organizar, por ela estive a seu lado e promovi o evento, por ela recebi várias pessoas que nunca vi na vida, bem feliz, querida. por ela eu fui até outra pessoa de tão não eu. .. e me fez muito bem, oferecer isso pra ela.

em 2016, foi o ano da surpresa. apareci de barriga chocando um total de, todo mundo da minha familinha. 

mas mesmo antes dessa notícia, estresse com aulas, correrias da vida, distância, não era sempre que a gente conseguia estar lá. sempre foi mais ela com ela, as escolhas que ela fez, e a gente correndo atrás também, da nossa rotina. mas sempre que ia lá, ela tinha mudado muita coisa. ou a época do ano tinha mudado a paisagem, ou ela agregou ou retirou, ou podou, ou enfim.

ela reclamava de cuidar sozinha. ela queria muito que nós participássemos  do seu cuidado e amor pelo quintal. mas isso não é algo que se incute, não é algo que venha de chantagem sentimental, .. pode ser construído, despertado de alguma maneira, mas nunca de acordo com a expectativa do outro. é difícil. o Sílvio deixou claro que é entusiasta, mas gosta é de colher e admirar. o leonardo faz muita coisa porque ela pede. já fez algumas incursões, de vez em quando cuida de uma ou outra planta. lembro que ele que germinou pra mami as, esqueci o nome. virou modinha um tempo atrás aai, depois lembro, todo mundo vivia comprando.  ah é a Moringa.

e tem eu. e eu, bom, eu acho que até surpreendi ela, por em algum momento demonstrar, ou ceder, ou, criar o meu modo, de interagir e me conectar com as plantas, compartilhando mais com ela, desse seu amor. aai ai, a vida é engraçada.

agora a Flora está à venda. não consigo elaborar ainda muito bem, acho que vou esperar acontecer pra refletir no todo. novamente ela gostaria mais de nossa participação. isso sim. mas até agora tudo o que pude foi oferecer meu apoio emocional, minha boa sorte pra ela achar o que ela procura, e que seja seguro. e sobretudo, esconder minha apreensão. altas coisa né. pra ela não é muito não. mas é isso. 

já faz temmpo ela faz mudas de plantas que ela quer levar. um pouco delas faz eu trazer e eu nem tenho onde por, como a Murta querida, que escrevi outro dia. concertou váarias coisas na casa, ela está bem limpinha, arrumadinha, cherosa. muito louco isso.

e tem uma lembrança, linda e triste, me dói. quando eles se mudaram para a tão sonhada casa própria, eu me mudei deles. e como estava envolvida com final de curso, início de mestrado, trabalho, muito desse início, ou reinício de vida eu não acompanhei de perto.

um dia no meu celular velhinho eu recebi uma mensagem dela. ela estava na varanda, e começou a descrever a paisagem, e se emocionou, e disse que ela nunca pensou que ela iria se sentir tão feliz no seu lugar, no seu espaço.

eu guardei essa mensagem muito tempo. era linda. até que se perdeu em alguma dessas trocas de celular que acontecem aí na vida.

e quando eu refaço sua trajetória naquela casa, a referência sempre foi essa mensagem. e me entristece muito que seu final feliz, não tenha se estendido ao pós-crédito da realização desse sonho sabe.

nossa história só acaba quando acaba né não. a dela tem outros capítulos e experiências novas. a minha também. não adianta profetizar nada, mas a gente sempre quer, isso é certo.., o melhor.